terça-feira, 16 de julho de 2013

Sobre a poesia e a morte


Não se deve censurar a poesia, assim como nenhuma arte deve ser censurada. O poeta deve e pode fazer poemas sobre tudo: amor, sol, vida, sexo, morte, tristezas, felicidade, formigas, portas, paredes com reboco ou sem, pensamentos, doenças, práias, cemitérios, árvores, desertos. Tudo é vida!
A censura pode ter várias configurações:  a de terceiros, que fazem disso profissão; de terceiros, que têm por desiderato destruir cada linha, cada idéia, cada frase; pelo próprio poeta que se deixa dominar por suas próprias regras morais, religiosas e outras, frutos de uma educação voltada para  a classificação das coisas, como certas ou erradas; pelo próprio leitor, que ao ler o poema se vê atingido e se censura, censura a sua própria leitura, e afasta aquele poema,não por razões estéticas, filosóficas, musicais, ritmicas, mas por razões de ordem moral; pelo próprio leitor, que sem saber o motivo, pura e simplesmente não gosta, atingido em alguma nota da sua alma, da sua experiência de vida, de seus medos. Esta última é um a censura mais sutil, porquanto o censor não sabe que censura ( que se censura). Devíamos ler um poema com os olhos e o coração abertos, o cérebro sem travas, possibilitando dele gostar ou não, mas prontos para percorrer suas palavras, suas entrelinhas, seus pontos e exclamações e descobrir a beleza, que poderá haver nele, independentemente das frases e do tema. Estou convencido, de que é possível descrever um velório com arte e beleza, porque toda manifestação humana é cultural e é bela. Neste evento, por exemplo, existe um personagem principal ( ou cujo foco de luz, sobre ele se fixa momentaneamente), o morto, e outros coadjuvantes, parentes, amigos, que o relembram ou apenas manifestam a dor do momento. Tal situação vista pela janela da arte, pelos óculos da sensibilidade, é tão bonita quanto uma paisagem tropical, feita de luz, de água, de folhas, de sorrisos, de  juventude, de força e de alegria. A beleza está na essência das manifestações humanas ou naturais. A vida é um espelho (tudo nele se reflete), a vida é arte; a arte é vida que reflete e se reflete sobre tudo. A mão de um velho, repleta de veias salientes, de manchas, de nódulos, de quebras, de desarmonias é tão bonita - para os efeitos da poesia ou de qualquer outra espécie de arte - quanto a mão de jovem, lisa e saudável, rosada e harmônica, cuja musculatura desenhe suavidade e força. Tais considerações passam pelos olhos, pelo olhar, pela pele, pelo corpo, pela respiração ou pela falta dela. Tudo é vida!
Há um poema de Fernando Pessoa (infelizmente ele não está na minha frente) que diz mais ou menos assim: Cruz na porta da tabacaria/Quem morreu? O próprio Alves?/ Ele era o dono da tabacaria.../ Desde de ontem a cidade mudou. Este último verso "Desde ontem a cidade mudou" vem ao final de cada quadra ( acho que ao todo quatro ou cinco estrofes) para  dizer da perplexidade do poeta diante da morte do dono da tabacaria, que sempre lá estava, todos os dias, quando ele (poeta) passava, de dia e de noite, e o cumprimentava "Perdi essa monotonia/Ele (o Alves) era fixo/ Eu (o poeta), o que vou/ Desde ontem a cidade mudou; Se eu (o poeta) morresse amanhã ( porque não sou fixo, não estou no mesmo lugar todos os dias, não sou uma paisagem conhecida e esperada) "Ninguém diria/Desde ontem a cidade mudou".
Não é uma poesia de amor, que cante as belezas naturais, que cante o amor pela vida, é uma poesia de constatação sobre a morte e sobre o dia a dia. Quantas vezes, já ocorreu de pessoas que estamos acostumados a ver e a ouvir, desaparecerem ( pela morte ou não) e não a vemos e nem a ouvimos mais, e podemos dizer, nestas situações com Fernando Pessoa "Desde ontem a cidade mudou" e podemos, por certo dizer, que como não representamos para alguns qualquer fixidez, qualquer monotonia, qualquer repetição, quando morrermos ninguém haverá de falar: "Desde ontem a cidade mudou". Não é bonita a imagem? Mais do que isso, verdadeira. Quantas e quantas vezes me peguei sussurrando: "Desde ontem a cidade mudou..." e nas horas que passam e que se quebram por algum motivo visível ou não, podemos dizer com um suspiro só nosso: "Desde ontem a cidade mudou..." Carlos Roberto Husek

4 comentários:

  1. Tenho muito que aprender.... Envorgonho-me da minha falta de sensibilidade!! É trata-se de imperfeição humana.

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  2. Tudo é motivo para poesia, principalmente aquilo que há de mais censurável em nós mesmos. Ao transpor as agruras e agonias em palavras, conseguimos vislumbrar a beleza de tudo e todos, até onde parecia não existir em um primeiro e desatento olhar. Ainda bem que há espíritos iluminados como o senhor, capaz de nos tomar de assalto e mostrar o quão incauto somos. Que sua capacidade de ser resiliente persista, enfim :)

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  3. Tudo é motivo para poesia, principalmente aquilo que há de mais censurável em nós mesmos. Ao transpor as agruras e agonias em palavras, conseguimos vislumbrar a beleza de tudo e todos, até onde parecia não existir em um primeiro e desatento olhar. Ainda bem que há espíritos iluminados como o senhor, capaz de nos tomar de assalto e mostrar o quão incauto somos. Que sua capacidade de ser resiliente persista, enfim :)

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  4. Adorei seu manifesto em prol da poesia, me sinto em passeata, empunhando bandeiras com você pelas ruas. Os dizeres: "Não julgue, deixe-se conduzir pela poesia, sinta!"

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