segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

"Faz de conta"





"Pensar é não compreender...
Pensar é estar doente dos olhos."
                       Alberto Caeiro


Dói...
 

O paciente se queixa
            de uma dor indefinida
que começa na parte
                      externa do peito
e se aprofunda
                        pelo seu centro
até atingir o coração.


Doença grave, certamente!


Após exames laboratoriais,
            e de diversas espécies,
e em aparelhos modernos, 
               e de exames clínicos
minuciosos,
juntas médicas, estudos,
           chegou-se a conclusão:


O problema não é orgânico.


A investigação prosseguiu
               na parte psicológica,
quando se observou
que tudo na vida do queixoso
estava em ordem:
        trabalho, estudo, amigos,
mas parecia faltar alguém ou
                              faltar algo...


Quem ou o quê?

Dói, reafirmou o paciente.

O que faltava?

Nada... 

E nos lugares
      que costumava frequentar
outras almas ou corpos,
                        pelo menos por
aqueles tempos,
              não se apresentavam,
salvo aqueles
                 que costumava ver.


O diagnóstico:


A existência  de um vazio.


Remédio:


Doses homeopáticas
                                 e diárias
de "faz de conta",
    pois, só assim continuaria
a viver.


Começou a sorrir e a 
             brincar todos os dias
e só punha a cabeça
          no travesseiro na hora
de dormir,
                   fechando os olhos
e rezando
                para não sentir dor
e ter forças
                       no dia seguinte.


Passaram os dias,
                     semanas, meses,
sempre no "faz de conta".


Enganou-se
                     ou foi enganado.


A doença amadureceu
                          e virou casca,
registrando-se na pele,
                        nas pálpebras,
e não perdeu, de todo,
        a sua primitiva sequela.


Era até identificável
      por amigos mais íntimos
e pessoas mais sensíveis,
                   porquanto a dor,
ou seja lá o que pensava
                                     sentir,
mostrava-se de forma clara
para quem pudesse,
     ou tivesse olhos para ver. 


Dali por diante,
                 quando a dor batia
tomava algumas doses
                    do "faz de conta".
          (mero alívio)


E assim foi vivendo
                até o fim de seus dias,
repleto de cicatrizes,
     embora nem todas visíveis...




Carlos Roberto Husek


Um comentário:

  1. Faz de conta

    Sentou-se para descansar e em breve fazia de conta que ela era uma mulher azul, porque o crepúsculo mais tarde talvez fosse azul, faz de conta que fiava com fios de ouro as sensações, faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que dela não estava em silêncio alvíssimo escorrendo sangue escarlate, e que ela não estivesse pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz de conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz de conta verde-cintilante, faz de conta que amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, faz de conta que estava deitada na palma transparente da mão de Deus, não Lóri mas o seu nome secreto que ela por enquanto ainda não podia usufruir, faz de conta que vivia e não que estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da
    morte, faz de conta que ela não ficava de braços caídos de perplexidade quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que ela era sábia bastante para desfazer os nós de corda de marinheiro que lhe atavam os pulsos, faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua pois ela era lunar, faz de conta que ela fechasse os olhos e seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos de gratidão, faz de conta que tudo o que tinha não era faz de conta, faz de conta que se descontraía o peito e uma luz douradíssima e leve a guiava por uma floresta de açudes mudos e de tranqüilas mortalidades, faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando por dentro — pois agora mansamente, embora de olhos secos, o coração estava molhado; ela saíra agora da voracidade de viver. Lembrou-se de escrever a Ulisses contando o que se passara, mas nada se passara dizível em palavras escritas ou faladas, era bom aquele sistema que Ulisses inventara: o que não soubesse ou não pudesse dizer, escreveria e lhe daria o papel mudamente — mas dessa vez não havia sequer o que contar.
    Clarice Lispector

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